Além das adaptações do Fluxo de Caixa Descontado descritas acima, a avaliação de ativos ESG traz outra característica específica, relacionada aos fluxos de caixa. Vamos mergulhar um pouco nisso:
1. DCF tradicional: fluxo de caixa único para o proprietário do ativo
Em um modelo tradicional de DCF, a premissa é direta: há um fluxo de caixa fluindo para o proprietário ou investidor do ativo. Esse fluxo é derivado da capacidade do ativo de gerar retornos financeiros (como receitas, economia de custos etc.), e o proprietário se beneficia diretamente disso.
Essa estrutura funciona bem tanto para ativos tangíveis (como imóveis, maquinário) quanto para ativos intangíveis (como propriedade intelectual, marcas). O proprietário desses ativos captura todos os benefícios financeiros.
2. Ativos ESG: dois fluxos de caixa (privado e coletivo)
Para ativos ESG, existem dois fluxos de caixa distintos:
- Fluxo de caixa privado: é o benefício financeiro que flui para o proprietário do ativo ou investidor, assim como no DCF tradicional. Inclui os lucros, economias ou outros retornos financeiros diretos resultantes de iniciativas ESG. Por exemplo, uma empresa que investe em tecnologias de eficiência energética pode reduzir seus custos operacionais, aumentando, assim, os fluxos de caixa para seus proprietários.
- Fluxo de caixa coletivo: é o benefício social e ambiental mais amplo, que flui para o planeta, o ecossistema ou a sociedade em geral. Pode incluir emissões de carbono reduzidas, ar mais limpo, equidade social aprimorada ou padrões de governança aprimorados. Embora esse tipo de fluxo possa não se traduzir imediatamente em ganhos financeiros para o proprietário do ativo, configura-se como criação de valor real sob uma perspectiva social.
3. Os dois fluxos de caixa estão corretos?
Sim, a ideia de dois fluxos de caixa é conceitualmente válida, e aqui está o porquê:
Fluxo de caixa privado (para o proprietário do ativo):
Impacto financeiro: esse fluxo está alinhado com o modelo DCF, e o foco está nos retornos monetários que o investidor ou proprietário do ativo receberá do investimento ESG. Tais retornos podem incluir:
- Custos de energia reduzidos devido a práticas sustentáveis;
- Aumento da receita de consumidores que preferem produtos ecológicos;
- Evitamento de multas ou penalidades regulatórias por meio da conformidade com os padrões ESG.
Fluxo de caixa coletivo (para a sociedade ou para o planeta):
Impacto não financeiro: esse fluxo reflete as externalidades ou transbordamentos positivos que o ativo gera para o meio ambiente ou a sociedade. Por exemplo:
- Um investimento em energia renovável reduz as emissões de carbono, o que beneficia a sociedade em geral, pois há a mitigação das mudanças climáticas;
- Uma empresa que adota práticas trabalhistas socialmente responsáveis além do que a legislação exige pode contribuir para a equidade social e melhores condições de trabalho, beneficiando a comunidade em geral.
- Criação de valor social: esse valor não é capturado no balanço da empresa, mas contribui para o bem público. Enquanto o DCF tradicional luta para contabilizar isso, novas estruturas, como investimento de impacto e contabilidade ambiental, estão surgindo para quantificarem os benefícios sociais.
4. Desafios na avaliação do fluxo de caixa coletivo
O fluxo de caixa coletivo apresenta desafios únicos em termos de avaliação:
- Quantificação: como quantificamos os benefícios para o planeta ou a sociedade em termos financeiros? Por exemplo, como você coloca um valor em dólar na redução de emissões de carbono ou na melhoria da saúde pública? Esses são benefícios reais, mas difíceis de incorporar diretamente em modelos de fluxo de caixa.
- Horizonte de tempo: os benefícios sociais dos investimentos ESG geralmente se desenvolvem em um horizonte de tempo mais longo do que as previsões típicas de fluxo de caixa, dificultando sua adequação ao foco de curto prazo dos modelos DCF tradicionais.
- Propriedade e incentivos: como o fluxo de caixa coletivo beneficia o público ou o meio ambiente, nenhuma entidade única o “possui”, e o sistema financeiro pode subvalorizar os benefícios. Governos, organizações não governamentais (ONGs) ou investidores de impacto podem ter mais incentivos para apoiar esses benefícios coletivos, mas investidores privados podem não internalizá-los totalmente sem incentivos de políticas ou parcerias público-privadas.
5. Incorporando valor coletivo em modelos financeiros
Existem algumas abordagens para tentar incorporar esse modelo de fluxo de caixa duplo na tomada de decisões financeiras:
- Shadow Pricing para Externalidades: modelos financeiros podem atribuir shadow prices para externalidades como emissões de carbono. Por exemplo, créditos de carbono e esquemas de precificação de carbono tentam internalizar os custos ambientais da poluição, criando um incentivo financeiro para reduzir emissões. Dessa forma, uma parte do benefício coletivo se torna um fluxo financeiro que pode ser capturado pelo proprietário do ativo.
- Retorno Social sobre Investimento (SROI): uma estrutura emergente que tenta quantificar o impacto social e ambiental mais amplo de um investimento em termos financeiros. Embora não seja perfeito, o SROI se move em direção ao reconhecimento do segundo fluxo de caixa na tomada de decisões.
- Modelos de Financiamento Combinado (Blended Finance): em alguns casos, parcerias público-privadas ou estruturas de financiamento combinadas permitem tanto retornos financeiros quanto benefícios sociais. Por exemplo, governos podem subsidiar projetos que gerem fortes fluxos de caixa coletivos, tornando-os mais atraentes financeiramente para investidores privados.
6. Ligação entre os dois fluxos: sinergia ou compensações?
Em muitos investimentos ESG, os fluxos de caixa privados e coletivos podem ser sinérgicos:
As empresas que reduzem o desperdício, melhoram a eficiência energética ou promovem a responsabilidade social geralmente veem não apenas benefícios sociais, mas também melhorias em seu próprio desempenho financeiro (por exemplo, economia de custos, redução de riscos e reputação aprimorada).
No entanto, em alguns casos, pode haver compensações:
Investimentos que geram benefícios sociais ou ambientais significativos podem ter custos mais altos ou retornos financeiros mais baixos no curto prazo, o que pode afastar investidores privados, a menos que os benefícios coletivos sejam de alguma forma internalizados (por exemplo, por meio de incentivos governamentais, isenções fiscais ou apoio regulatório).
Conclusão
Embora os modelos DCF tradicionais capturem os fluxos de caixa financeiros para o proprietário, eles frequentemente perdem o valor social e ambiental mais amplo (o fluxo de caixa coletivo). À medida que a importância do ESG cresce, novas estruturas financeiras provavelmente evoluirão para melhor contabilizarem esses fluxos duplos de valor, potencialmente impulsionando uma expansão maior do mercado ao reconhecerem e incentivarem o impacto mais amplo dos investimentos em ESG.
Essa visão ampliada dos fluxos de caixa pode mudar fundamentalmente a forma como avaliamos os ativos e direcionar mais capital para investimentos que não apenas gerem retornos financeiros, mas também criem resultados sociais e ambientais positivos.