A evolução a passos largos do ambiente regulatório no que tange à prática e divulgação da jornada ESG das empresas, especialmente na vertente climática, vem obrigando a uma adaptação sem precedentes do mercado financeiro e seus participantes. Aspectos antes delegados ao nível operacional da companhia, como as conformidades com a legislação ambiental e social, agora fazem parte de um conjunto bem mais amplo de normas e boas práticas de diversas origens, que deverão somar-se às já existentes, sob a supervisão e responsabilidade direta dos acionistas e alta direção.
A primeira consequência é o aumento do custo. Em um ambiente onde o aumento da produtividade já está no limite, em mais de um século de avanços tecnológicos e turbinado pela globalização da economia, esse incremento no custo corporativo por conta de um nascente (e crescente) compliance ESG precisará estar associado, e o mais rápido possível, à geração de valor adicional aos acionistas das empresas.
E de acordo com as Normas Internacionais de Avaliação, essa geração de valor precisa ser mensurável pelos participantes de mercado, e atribuído a algum tipo de ativo, que por sua vez precisa ser identificável, mesmo que combinado com outros. Seria uma utopia acreditarmos que esse custo ESG, que já nasce mensurável, sobreviverá e salvará o Planeta sem a contrapartida da geração de valor. Se fosse assim, os governos, ONG´s, Instituições de Pesquisa, Michael Jackson, U2 e Sting já o teriam feito, começando pela erradicação da fome no mundo, tarefa bem mais fácil e menos onerosa do que reduzir a temperatura do Planeta.
A Apsis, maior empresa independente brasileira especialista em mensuração do valor justo, há mais de 45 anos escolhida como avaliadora de ativos tangíveis e intangíveis em grandes transações, vem dar sua contribuição ao mercado, utilizando o mercado de carbono voluntário como exemplo na aplicação das abordagens de avaliação.
Definicação de valor
De acordo com as IVS (Normas Internacionais de Avaliação), o valor de um bem está relacionado ao benefício futuro que este bem, sozinho ou combinado, poderá gerar ao seu proprietário, ponderado pelo risco associado. Aplicando a definição ao Ativo de carbono em estudo (VCU – Verified Carbon Unit), teríamos:
Proprietário do ativo – inicialmente será o controlador da área de influência onde o projeto será desenvolvido e aplicado. Esta área pode ser um sistema emissor de GHG (sistemas de geração de energia, sistemas industriais, aterros sanitários, etc) um sistema de remoção de GHG, ou um sistema com grande estoque de GHG sob ameaça de liberação (caso das florestas nativas). Mas nesse momento não existe ainda o VCU, apenas um potencial de geração.
Benefícios Futuros – em um primeiro momento, o de desenvolvimento do projeto, o fluxo de benefícios futuros é de extrema incerteza, assim como o fluxo de investimentos até a fase de maturação e “colheita” do ativo (leia-se emissão dos VCU´s). Evidência desta incerteza é a ausência de financiamento bancário ao proprietário nessa fase, sendo o custo de desenvolvimento realizado com capital próprio, seja do proprietário original, ou de um 2º proprietário que aceite arcar com os custos de desenvolvimento em troca de um percentual dos ativos a serem criados. Além da incerteza sobre a futura existência do ativo, somam-se as incertezas sobre o mercado e preços futuros.
Ainda com relação aos benefícios futuros, existe ainda uma característica peculiar a esta nova classe de ativos ESG: a bifurcação do fluxo de benefícios. Enquanto os ativos atuais, sejam tangíveis ou intangíveis, estão associados a fluxos de benefícios econômicos futuros para seus proprietários, os ativos ESG estão associados a fluxos de benefícios para o Planeta, que por sua vez influenciam (ou pelo menos deveriam influenciar) o fluxo de benefícios econômicos dos seus proprietários.
Risco associado ao ativo – pelas incertezas descritas anteriormente, e pelo estágio atual do mercado de carbono voluntário, que encontra-se em redefinição de metodologias pelas acusações de “greenwashing”, o risco é elevado e não mensurável. Não existem ainda bases de dados históricas de transações públicas para qualquer análise de risco sobre os retornos futuros projetados.
Valor justo (fair value) de um VCU
A determinação do valor justo de um VCU é uma tarefa mais complexa do que se imagina, por conta das características peculiares desta nova classe de ativo intangível em construção. Felizmente as normas atuais de avaliação podem (e devem) ser aplicadas também a estes ativos, tomando-se os cuidados necessários no desenvolvimento do trabalho.
As IVS determinam que qualquer ativo deve ser mensurado através de três abordagens de avaliação: a abordagem de custo (Asset Approach), a abordagem de mercado (Market Approach) e a abordagem da renda (Income Approach). O avaliador deve emitir sua opinião sobre o valor justo somente após examinar o ativo em questão através das três abordagens, e sob a ótica de um participante do mercado. Em linha com essa prática podemos citar a regulamentação da CVM para elaboração de laudos de avaliação.
Abordagem de custo
A abordagem de custo está relacionada ao custo de reprodução do ativo em questão, para a mesma utilização ou finalidade. Geralmente fornece o piso de valor para o ativo em negociação, pois como vimos anteriormente um ativo é adquirido para gerar benefícios econômicos futuros ao seu comprador. Por outro lado, o vendedor precisa ser ressarcido do custo de desenvolvimento do ativo, com uma margem de lucro. Em um mercado ideal, caso o vendedor tenha desenvolvido o ativo por um custo muito elevado, além das expectativas de benefícios futuros do comprador, este irá procurar outros ativos semelhantes, desenvolvidos a um custo mais baixo. Esta abordagem é a base da contabilidade, e por isso dizemos que representa o piso de valor em qualquer negociação. Os valores dos ativos de longo prazo, tangíveis ou intangíveis, são registrados nos balanços das empresas inicialmente pelo seu custo, seja ele de desenvolvimento interno, ou de aquisição do ativo no mercado.
Com relação ao VCU, o custo de reprodução é único para cada projeto, característica comum aos ativos intangíveis. E dependendo da natureza do projeto que dará origem aos VCU´s, este custo deverá ser o suficiente para:
- Desenvolver os estudos e verificações necessários à garantia da adicionalidade do projeto, viabilizando a emissão dos VCU´s. A adicionalidade, que consiste em evidenciar que o projeto é necessário para remover o carbono ou reduzir sua emissão, é uma característica fundamental desta classe de ativos. A importância da adicionalidade está relacionada à garantia de que o fluxo de benefícios futuros flua também para o Planeta, como vimos anteriormente;
- Manter a perenidade do projeto, após o início das emissões dos VCU´s. A perenidade também é uma característica fundamental, e está relacionada à eficácia operacional do projeto em obter os recursos necessários com a venda dos VCU´s e aplicá-los nos investimentos e despesas necessários à implementação da “Teoria da Mudança” ao longo da vida útil do projeto, até onde a mudança se torna perpétua. Neste ponto, o projeto perde a adicionalidade e os VCU´s não serão mais emitidos, significando que o fluxo de benefícios continuará fluindo para o Planeta, independente de qualquer incentivo financeiro externo.
A assertividade no dimensionamento destes custos ao longo da vida do projeto, associada aos cálculos de CO2e específicos de cada metodologia aceita nos processos de certificação dos VCU´s, é fundamental para a estimativa do valor do ativo VCU com base na abordagem dos ativos ou de custo. Como veremos adiante, é também a única forma no momento atual do mercado de garantir que a transação de mercado com um determinado VCU irá garantir os recursos necessários para que sua finalidade e utilidade principal seja atendida, que é garantir que o fluxo de benefícios ao Planeta seja atingido.
Abordagem de mercado
A abordagem de mercado está relacionada à comparabilidade do ativo com outros ativos transacionados no mercado. Geralmente é a metodologia principal em mercados maduros, onde os ativos são perfeitamente comparáveis em seus atributos e o volume de transações atendem os critérios de liquidez e precisão estatística necessários.
A abordagem de mercado não é a metodologia principal recomendada para avaliação isolada de ativos intangíveis, pela própria natureza desta classe de ativos. Ativos intangíveis, como marcas e patentes, são únicos e geralmente geram benefícios aos seus proprietários combinados com outros ativos, aumentando a complexidade na construção de bases comparáveis. As ações de uma empresa de capital aberto são um exemplo disso.
No caso dos VCU´s, a complexidade inerente ao ativo, a falta de volume e liquidez, e o mercado ainda perdido com relação aos “drivers” de valor, são fatores impeditivos para a utilização desta abordagem para determinação do valor justo. Existem por exemplo VCU´s sendo oferecidos no mercado com preços variando de US$ 1/tCO2e a US$ 7 / tCO2e, para a mesma certificadora e metodologia de quantificação. Comprar um VCU sem uma correta diligência técnica sobre o projeto de origem, assim como sobre o valor justo do VCU para que os fluxos de benefícios (Planeta e Proprietário) ocorram, é dar sinal verde para uma continuidade do “greenwashing”.
Abordagem da renda
A abordagem da renda está relacionada com a essência da definição de valor mencionada no início. Consiste no somatório dos benefícios econômicos futuros gerados pelo ativo, trazidos a valor presente por uma taxa de desconto que reflita o custo do dinheiro no tempo e o risco associado ao desenvolvimento do projeto.
No caso dos VCU´s, já vimos anteriormente que os componentes necessários à aplicação da abordagem da renda (fluxo de benefícios futuros e risco), ainda não podem ser estimados com precisão pelo mercado.
Conclusão
Na determinação do Valor Justo de um VCU (Verified Carbon Unit) no mercado voluntário de carbono, o avaliador deverá considerar necessariamente as três abordagens de avaliação antes de emitir sua opinião de valor, principalmente por tratar-se de ativo bem peculiar, criado com a intenção de direcionar fluxos de benefícios econômicos para projetos de redução / remoção de gases do efeito estufa (GHG). Como trata-se de um mercado voluntário, a não observância deste rigor no processo de avaliação poderá levar as empresas a transacionarem e contabilizarem ativos sem o menor lastro em sua finalidade, diferentemente do mercado regulado de carbono, onde todo o esquema de transações está interligado com um sistema governamental de metas, incentivos e multas. A desregulamentação implícita no mercado voluntário é a maior aliada do “greenwashing”, e deverá ser combatida com um maior rigor na determinação do valor justo do VCU pelos avaliadores independentes.